A ação do demônio na história

Na parábola do joio, Nosso Senhor nos dá uma visão da história e da Igreja como só Ele pode dar. E Ele mesmo se dignou a explicá-la aos seus apóstolos. Nos disse que o reino dos céus, a Igreja, se assemelha a um homem que semeou boa semente em seu campo e, enquanto dormiam seus homens, veio o inimigo e semeou joio em meio ao trigo. Claro, quando tudo começou a crescer, não foi possível distinguir o joio do trigo, mas somente quando a erva começou a produzir frutos. O dono do campo, questionado por seus trabalhadores se deveriam arrancar o joio, os respondeu que não, que deixassem crescer até a colheita; então se procederia para separar o joio do trigo, o primeiro para queimá-lo e o segundo para guardá-lo nos celeiros.
O semeador é Cristo, o campo em que se semeia é o mundo, a semente é a doutrina revelada, o trigo são os filhos do Reino. Mas o demônio, inimigo do Homem, semeia mentiras, fazendo brotar o joio que são os filhos do Mal. Cristo deixa ambos crescerem misturados, mas o dia da colheita, que é o dia do Juízo Final, enviará seus anjos para separar os maus dos bons, os primeiros para lançá-los no fogo do Inferno e os segundos para juntá-los no celeiro do Céu.
Em poucas palavras, esta parábola nos revela um dos mistérios que mais nos aflige: a permissão divina para a ação do demônio. De fato, o Salvador nos manifesta aqui três pontos importantes:
- A paciência divina que permite que o demônio atue no mundo ao lado da graça.
- A atividade sempre alerta do mesmo demônio para neutralizar e destruir a ação da graça.
- As táticas do demônio para realizar esta atividade destrutiva, sobretudo sua habilidade especial em aproveitar a escuridão para se disfarçar.
1° Paciência divina em permitir a ação do demônio junto a da graça
Nos descreve o livro de Jó, como em uma ocasião, ao apareceram os anjos diante de Deus, apareceu também o demônio entre eles. O Senhor lhe perguntou se havia reparado em seu servo Jó, varão temeroso de Deus como ninguém, e o demônio o respondeu, dizendo que isso não teria mérito algum, já que Deus o havia cumulado de bens, mas que se desse uma oportunidade de atribulá-lo, veria como Jó se rebelaria contra Ele. O Senhor o permitiu, então, tentá-lo, o qual fez de muitas formas: devastando sua propriedade, tirando todos os seus bens, matando todos os seus filhos e o cobrindo com uma terrível úlcera dos pés à cabeça. Segundo São Gregório, Jó, assim, tentado é a figura da Igreja, especialmente da Igreja no final dos tempos.
Igualmente, São Paulo vê como ao lado do mistério da graça, a que se dá o nome de Mistério de Cristo, se desenvolve um mistério paralelo de maldade e de pecado, a qual se dá o nome de Mistério da Iniquidade, e resume a história do mundo, a luta entre estas duas forças. É bem certo que triunfará o Mistério de Cristo, mas não deixa de ser pavoroso o que nos diz o Mistério da Iniquidade: que irá tomar força no decorrer dos tempos, de modo que parecerá que irá prevalecer até o final. Só então se poderá claramente reconhecer, como o joio da parábola, pois, só então se terá cristalizado em frutos concretos, entre os quais está a grande apostasia de uma sociedade outrora conquistada para Cristo.
Tudo isso corresponde com o que Nosso Senhor nos disse aqui: a terra semeada de bom trigo é o florescimento do Mistério de Cristo; a terra semeada de joio é o Mistério da Iniquidade. Ambos crescem juntos, esperando a colheita, o desenlace final.
2° A atividade sempre alerta do demônio para neutralizar e destruir a ação de Deus
Bem, neste Mistério da Iniquidade, o mesmo São Paulo nos convida a ver a ação oculta, mas real e decisiva, do demônio. Seríamos muito enganados se julgássemos a história somente pelos acontecimentos humanos que a compõem, pelas causas externas que aparecem por fora e não tivéssemos em conta que tudo isso responde à ação invisível tanto da graça como do demônio. Por trás de todas as adversidades que sofre a Igreja, se encontra, de um modo ou de outro, de maneira mais ou menos indireta, a ação principal dos poderes das trevas; e assim São Paulo nos adverte que “Porque nós não temos que lutar (somente) contra a carne e o sangue, mas sim contra os principados e potestades (do inferno), contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra os espíritos malignos (espalhados) pelos ares.” (Ef. 6, 12).
Bossuet, em seu “Discurso sobre a História Universal”, explica apropriadamente como, assim que o Cristianismo começou a se difundir entre os povos gentios, o demônio se apresentou na batalha como forma de perseguição. Vendo que a perseguição não conseguia suprimir os cristãos, mas sim que aumentava seu número, recorreu logo à discussão doutrinal de filósofos pagãos contra apologistas católicos. Como tão pouco isso bastou, tentou relativizar as diferenças das religiões, afirmando, pela boca de Porfírio, que na realidade, os diferentes deuses eram nomes diferentes com que chamamos a uma mesma divindade e que Jesus e Júpiter eram o mesmo. Como os cristãos não caíram na armadilha, o demônio tentou uma última alternativa: a heresia. Ao invés de atacar a Igreja por fora, começou a atacá-la por dentro. É o joio semeado em meio a trigo. E como se deu conta de que essa era sua melhor tática, a manteve já para o resto da luta. De modo que todas as heresias que se levantaram contra a Igreja, além de suas causas humanas, foram orquestradas pelo diabo.
3° As táticas do demônio, especialmente sua habilidade para se camuflar
A parábola do joio nos revela táticas interessantíssimas do demônio para proceder seus intentos. Vejamos algumas delas.
1° A primeira é o cuidado que o demônio tem para que sua ação passe totalmente despercebida. Ataca à noite, quando ninguém o vê. Pensar que os ataques do demônio tomam frequentemente uma forma exterior visível seria desconhecer as táticas diabólicas. O demônio é essencialmente um poder das trevas. Trabalha na escuridão para surpreender e enganar. O êxito de sua ação na Igreja depende da sua habilidade em esconder o que é e o que faz. De modo que só se mostra exteriormente, quando é forçado a fazê-lo, para neutralizar e imitar os carismas divinos ou graças extraordinárias que quer desacreditar e quando se vê vencido ou impotente (então sua raiva pode mais que sua prudência). Duas coisas, em particular, facilitam este “perfil discreto”:
- Primeiro, a negligência dos trabalhadores do evangelho. “A força do inimigo, dizia São Pio X, é a fraqueza dos católicos”. Isso sempre foi assim. Quando os pastores dormem, quando o cristão descuida de sua fé, da sua prática religiosa, então o demônio aproveita a situação para semear todos os germens de morte espiritual que pode: alguns doutrinais, que são os erros, e outros morais, que são os vícios. E com isso sabe que tem a partida ganha.
- E logo, a mesma permissão divina: “Esta é vossa hora, e do poder das trevas” (*Lc 22,53). Deus deixa trabalhar o demônio para estimular os católicos, para fazer mais meritória sua fidelidade, para que os sofrimentos que ele provoca sejam meios de redenção de almas e pecadores.
2° A sua grande arma é: a mentira. A dissimulação e a mentira são os meios dos quais não poderia prescindir e constituem toda sua tática de combate. Já Nosso Senhor o chamava de “pai da mentira”. Porém a mentira mais eficaz é a que é quase verdade. O joio é uma planta muito parecida com o trigo quando o caule e a espiga estão, ainda, muito macios. O demônio semeará continuamente o caminho da Igreja com meias verdades, que são mentiras inteiras. As heresias são um exemplo disso: se afirmam algumas verdades, mas se negam alguns pontos doutrinais decisivos para que a verdade siga sendo verdade.
O Salvador semeou a verdade. Desta verdade semeada brota o trigo, as almas santas; pois toda vida da graça se baseia na verdade revelada. Se apoia na verdade sobre Deus, sua Majestade, suas perfeições infinitas, seus direitos. Se apoia na verdade sobre o Homem, sua condição de criatura, suas obrigações para com Deus, sua dependência de cada momento para com Ele. Se apoia na verdade sobre o mundo: a sociedade, procedente de Deus; a Igreja instituída por Cristo; ambas obrigadas a reconhecer a realeza de Cristo sobre toda realidade criada.
O Demônio semeia a mentira. Desta mentira brota o joio dos ímpios. Da mentira sobre Deus, a quem se nega, ou a quem se confunde com as criaturas, ou a quem se falsifica com divindades inventadas, múltiplas, viciosas, ou a quem se nega o direito de reinar sobre suas criaturas. Da mentira sobre o homem, cuja independência de Deus se proclama, cujos direitos são estabelecidos como lei suprema. Da mentira sobre todo o mundo real. É incrível até que ponto o mundo moderno vive da mentira. Mentira é o ecumenismo atual que finge que todas as religiões e todos os deuses valem; mentira é a ideologia dos direitos do homem; mentira é a democracia, a liberdade de imprensa e de consciência, mentira é o evolucionismo que se ensina nas escolas e universidades; mentira é a imprensa, o rádio, a televisão, o cinema; mentira é o modo de pensar do mundo moderno, que toma como única realidade a daqui de baixo, negando ou esquecendo da eternidade. Para divulgar estas mentiras, o demônio se vale de tudo: de pessoas, instituições, correntes de pensamento, dinheiro, poder, fama, meios técnicos…
Conclusão
De tudo isto se segue que “Sede sóbrios e vigiai. Vosso adversário, o demônio, anda ao redor de vós como o leão que ruge, buscando a quem devorar.”. Como resistir? “Resisti-lhe fortes na fé”. (**1 Pedro 5, 9), isto é, na verdade, na graça semeada por nosso Salvador.
- Devemos nos atentar ao ensinamento da Igreja, que não pode mudar e desmascarar vigorosamente todos os enganos da civilização moderna.
- Devemos cuidar de nossas relações com Deus, recebendo frequentemente os sacramentos, cuidando e protegendo a vida da graça, difundindo-a ao nosso redor, aos nossos filhos, às nossas amizades.
- Sobretudo, devemos nos submeter a Deus pelo cumprimento perfeito de sua santíssima vontade.
Tenhamos em conta que cada uma de nossas almas é um campo em que, ao lado da graça divina, há também sementes do pecado, que devemos combater: nossas ignorâncias, nossos defeitos e vícios. Quem por eles se deixa dominar, joio é e já sabe o que o espera. Quem luta contra eles, apoiando-se na fé e na graça, trigo é, e sabe também o que será de sua vida.
Peçamos à Santíssima Virgem, a essa Rute divina, a essa semeadora de Deus, que Ela mesma passe por nossos campos; que Ela mesma tire de nós toda erva daninha e recolha e nos conserve o bom trigo.
Notas:
* Lc 22, 53 “Quando eu estava todos os dias convosco no templo, nunca estendestes a mão contra mim; porém, esta é a vossa hora, e o poder das trevas.”.
** 1 Pedro 5, 9 “Resisti-lhe fortes na fé, sabendo que os vossos irmãos, que estão espalhados pelo mundo, sofrem as mesmas coisas.”
Fonte: Hojitas de Fe - nº 5