A espiritualidade do Advento
“Vem, Senhor, visitar-nos em paz, para que possamos alegrar-nos diante de Vós com coração perfeito”
Uma contemplação de Santo Inácio, no seu livro dos Exercícios, resume admiravelmente os pensamentos e sentimentos que devem ocupar-nos durante o tempo do Advento: a contemplação da Encarnação. Nela, Santo Inácio faz-nos ver
“…como as três pessoas divinas contemplavam toda a redondeza da terra, cheia de homens, e como, vendo que todos desciam ao inferno, se determina, na sua eternidade, que a segunda pessoa se faça homem, para salvar o gênero humano. E, assim, chegada a plenitude dos tempos, é enviado o anjo S. Gabriel a nossa Senhora” (n.º 102).
Santo Inácio nos faz praticar essa contemplação distinguindo três planos:
• o dos homens;
• o da Santíssima Trindade;
• o de Maria.
Vamos considerá-los brevemente, a fim de podermos tirar dele um fruto para as nossas almas.
1º Os homens
“Ver as pessoas, umas e outras. E, primeiro, as da face da terra, em tanta diversidade, assim em trajes como em gestos: uns brancos e outros negros, uns em paz e outros em guerra, uns chorando e outros rindo, uns sãos e outros enfermos, uns nascendo e outros morrendo; ouvir o que falam, ou seja, como falam uns com os outros, como juram e blasfemam; ver o que fazem, como ferir, matar, ir para o inferno”.
O Advento é o tempo que representa a história da humanidade desde Adão, caído pelo pecado, até Jesus Cristo. Durante milhares de anos, Deus adiou o envio do seu Filho; e uma das razões para essa disposição divina, segundo Santo Tomás, era que o homem, que por orgulho havia pecado, se visse obrigado a reconhecer, por uma experiência prolongada da sua fraqueza e da extensão da sua miséria, a necessidade absoluta de um Redentor, e a aspirar pela sua vinda com toda as fibras da sua natureza.
Com efeito, o orgulho humano é muito profundo: custa-nos muito chegar à convicção, uma convicção verdadeira, da nossa miséria. Mas o homem tinha de ver a impossibilidade em que se encontrava de sair por si mesmo do estado em que o pecado o deixara.
Muitas foram as grandes civilizações e povos do Antigo Testamento; mas nenhuma durou, nenhuma foi capaz de libertar os homens do pecado e das suas consequências; pelo contrário, essas civilizações baseavam-se muitas vezes na ambição, na crueldade, na idolatria, no desejo desenfreado de poder e riquezas.
Todas as feridas que o pecado original deixou em nós mostraram o quanto nossa natureza ficou desordenada e impotente para se levantar de sua degradação:
1º A inteligência ficou ferida por uma profunda ignorância, que ninguém descreveu melhor do que São Paulo:
“Tendo conhecido Deus, não O glorificaram como Deus, nem Lhe deram graças, mas, pelo contrário, obscureceram os seus raciocínios, e o seu coração insensato se enegreceu...; e trocaram a glória do Deus incorruptível por uma representação em forma de homem corruptível, de aves, de quadrúpedes, de répteis”.
2º A concupiscência ficou repleta de más paixões:
“Por isso Deus os entregou aos desejos do seu coração..., a paixões infames
– pecados de impureza, pecados contra a natureza –, pois as suas mulheres inverteram as relações naturais por outras contra a natureza; da mesma forma, os homens, abandonando o uso natural da mulher, inflamaram-se em desejos uns pelos outros, cometendo a infâmia de homem com homem”.
3º A vontade ficou presa na malícia:
“E como não se dignaram guardar o verdadeiro conhecimento de Deus, Deus os entregou à sua mente insensata..., cheios de toda a injustiça, perversidade, cobiça, maldade, cheios de inveja, homicídio, contenda, engano, malignidade, fofoqueiros, detratores, inimigos de Deus, ultrajadores, arrogantes, fanfarrões, engenhosos para o mal, rebeldes aos seus pais, insensatos, desleais, desamorosos, impiedosos”.
É o que diz Santo Inácio: os homens, totalmente submersos no turbilhão das suas paixões, ocupam-se de tudo, preocupam-se com tudo, exceto com a sua salvação.
2º A Santíssima Trindade.
“Ver e considerar as três pessoas divinas, como que no seu assento real ou trono da sua divina majestade, como observam toda a face e redondeza da terra, e todas as gentes em tanta cegueira, e como morrem e descem ao inferno; da mesma forma, ouvir o que dizem as pessoas divinas, a saber: “Façamos a redenção do género humano”; finalmente, olhar para o que fazem as pessoas divinas, a saber, realizando a santíssima encarnação.”
De fato, Deus não abandona o homem. Se este não se preocupa de todo com a sua salvação, Deus tem grandes desígnios para ele: dar-lhe-á um Redentor, um Reparador, que será anunciado ao longo dos séculos. Deus cobre assim a história desgraçada do homem com promessas de misericórdia, perdão e salvação, e vai delineando o Redentor prometido com traços cada vez mais determinados. É a segunda razão que Santo Tomás atribui à longa demora de Deus: a dignidade do Verbo encarnado exigia que a sua vinda fosse anunciada por uma longa série de profetas.
O prodigioso aqui é que, ao considerar a Trindade todos os homens que se condenam e descem ao inferno, determina que seja o próprio Deus quem venha nos salvar: a segunda pessoa da Trindade, o Verbo, o Filho, assumirá uma natureza humana, tornar-se-á da nossa raça, para realizar a nossa redenção e permanecer como garantia absoluta das misericórdias de Deus sobre a humanidade. De fato, como poderia Deus persistir na sua inimizade com o homem, se o seu Filho unigénito também é homem?
É, sobretudo, o profeta Isaías que nos manifesta o poder com que se realizará esta vinda do Filho de Deus:
1º Ele “carregará sobre os ombros o principado e terá por nome Admirável, Conselheiro, Deus, Forte, Pai do século vindouro, Príncipe da paz”.
2º Sobre Ele “repousará o Espírito do Senhor, com toda a plenitude dos dons de sabedoria e entendimento, conselho e fortaleza, ciência e piedade, e temor do Senhor”.
3º Uma vez ungido pelo Espírito do Senhor, “será enviado para levar a boa nova aos homens, para curar os de coração contrito, para pregar a redenção aos cativos, para proclamar o ano da graça por parte do Senhor; então se abrirão os olhos dos cegos, os ouvidos dos surdos ficarão desobstruídos, o coxo saltará como o cervo, a língua dos mudos se desatará”.
Definitivamente, “o próprio Deus virá e nos salvará”, com toda a plenitude do seu poder, da sua bondade, da sua sabedoria, da sua misericórdia.
Só n'Ele está a salvação; qualquer outro meio que se pretenda buscar está condenado à impotência.
3º A Virgem Maria.
“Ver Nossa Senhora e o anjo que a saúda; ouvir depois o que o anjo e Nossa Senhora dizem; contemplar também o que o anjo e Nossa Senhora fazem, isto é, o anjo cumprindo a sua missão de legado, e Nossa Senhora humilhando-se e dando graças à divina majestade».
Sim, o que torna admirável o plano de Deus é a suavidade com que harmoniza a sua omnipotência com a nossa profundíssima miséria: Deus sabe como manifestar as riquezas da sua misericórdia e do seu poder, adaptando-as à nossa miséria, com o objetivo de não nos assustar, mas, pelo contrário, de nos atrair para Ele. E assim:
1º Ele escolhe vir até nós através de uma Mãe, que é escolhida com particular predileção e a quem Ele adorna com privilégios admiráveis, para torná-la o mais bela possível, o mais digna de Si mesmo, o mais poderosa em nosso favor.
2º Para isso, Ele envia um arcanjo que lhe pede o seu consentimento, de modo que a própria natureza humana, representada então em Maria, aceita voluntariamente o dom de Deus. Qual deve ter sido então a expectativa da criação: como o sacerdote antes da sua ordenação; como a religiosa antes da sua profissão; como os noivos antes do casamento! Assim, veremos o Messias de Deus feito criança:
“Nasceu-nos um menino, foi-nos dado um filho, que traz sobre os ombros o principado...”.
3º A sua atuação será impregnada de mansidão, compaixão, condescendência:
“Não quebrará a cana rachada nem apagará a mecha que fumega..., mas julgará os homens com justiça e defenderá com retidão os humildes da terra”.
Conclusão.
Esta espiritualidade do Advento, se assim podemos chamá-la, tem grande importância para as nossas vidas, porque Deus nos faz viver espiritualmente o que aconteceu com os homens do Antigo Testamento:
1º Por um lado, deixa-nos muito tempo nas nossas próprias misérias, para que as sintamos, as experimentemos em toda a sua profundidade e extensão. O Senhor quer que tenhamos a profunda convicção da nossa miséria, da necessidade absoluta que temos do Redentor, e que clamemos a Ele com veemência, com confiança. Primeira disposição do Advento: uma profunda humildade.
2º Por outro lado, sobre esta nossa profunda miséria, Deus tem planos salvíficos maravilhosos: tudo isso está envolto na bondade e misericórdia de Deus Pai, que deseja veementemente dar-nos o seu Filho, para que n'Ele encontremos tudo. Segunda disposição do Advento: uma grande confiança.
3º Finalmente, tal como na Encarnação, Deus colocará em contato a sua infinita misericórdia e omnipotência com a nossa miséria, com uma admirável suavidade: compreendendo-nos, compadecendo-se de nós, adaptando-se às nossas necessidades, às nossas aspirações. É claro que, para estabelecer este contato, Ele exige de nós a fé e o espírito de recolhimento, que é a terceira disposição do Advento.
Peçamos à Santíssima Virgem, que em nosso nome soube receber tão bem Jesus na sua primeira vinda, que nos conceda agora as suas mesmas disposições interiores, para que a sua vinda às nossas almas na santa festa do Natal seja proveitosa para nós.[1]
Hojitas de Fe nº15 – Seminário Nossa Senhora Corredentora