O filho do régulo e a utilidade das doenças – Folha Dominical 346 – 18 a 25 de outubro de 2020

O filho do régulo e a utilidade das doenças

Refere São João que, tendo certo régulo vindo pedir a Jesus Cristo que quisesse acompanhá-lo até a casa dele para lhe curar um filho moribundo, o Senhor lhe respondeu: Vai, teu filho está vivo. O régulo creu nesta palavra, e, voltando à casa, soube pelos seus criados que a febre deixara o filho na mesma ora em que Jesus dissera: Teu filho está vivo. “Pelo que creu ele e toda a sua família”. Admiremos neste trecho do Evangelho uma disposição amorosa da divina Providência, que “toca de uma extremidade à outra e dispõe todas as coisas com suavidade” 1. Aquele bom régulo talvez nunca tivesse pensado em fazer-se discípulo de Jesus Cristo; mas o Senhor atraiu-o a si por meio da doença do filho e comunica-lhe, bem com à toda a família, o mais precioso dos seus dons, que é o da fé. É o que Deus quer fazer também a nosso respeito, quando nos envia tribulações e, em particular, a enfermidade.

Em primeiro lugar, Deus no-las envia a fim de que nos emendemos de alguma falta; porquanto, na palavra de São Jerônimo, “assim como as coisas materiais são lavadas com sabão, assim as almas se purificam por meio das enfermidades e tribulações”. Deus no-las envia também para nos consolidar mais na virtude. Por esse meio nos faz, por assim dizer, tocar com a mão a nossa fraqueza, esclarece-nos acerca da nossa vaidade e desapega-nos das coisas terrestres. Mas, o que é mais importante, as enfermidades, ao passo que diminuem as forças do corpo, reprimem os apetites de nosso maior inimigo, a carne; ao mesmo tempo que nos recordam que a terra é para nós um lugar de desterro, fazem-nos levar uma vida digna de um cristão e estar preparados para a passagem à eternidade. Por isso é que o Eclesiástico disse: “Uma grave enfermidade faz a alma sóbria”2

Tenhamos a persuasão de que Deus não nos envia as cruzes para nossa perdição, mas para nossa salvação. Quando, pois, o Senhor nos visita por alguma doença ou outra aflição, examinemos logo a nossa consciência e reconheçamos que temos merecido essa cruz, e, mais ainda, humilhemo-nos em sua presença e digamos com o bom ladrão: “Recebemos o que merecemos pelas nossas obras” 3. Entretanto, sem esperarmos que outros no-lo digam, aproximemo-nos espontaneamente dos santos sacramentos, lembrados do que nos diz o Espírito Santo: “Nas doenças deve-se, antes de mais nada, recorrer ao médico da alma, a fim de que nos livre da doença” 4. Não te é proibido rogar a Deus, como o régulo do Evangelho, que te alivie os sofrimentos. Se, porém, aprouver a Deus deixar-te na tribulação, dize então o que Jesus Cristo, muito mais aflito do que tu, não deixava de dizer no Horto: “Pai meu, se não pode passar este cálice sem que eu beba, faça-se a tua vontade”. Entretanto, consolemo-nos com a esperança do paraíso, que é um bem tão grande, que, para o ganharmos, todo o trabalho é leve. “Eu tenho por certo”, diz o Apóstolo, “que os sofrimentos da vida presente não têmproporção alguma com a glória futura que se manifestará em nós 5. A tribulação que nos vem no presente, momentânea e leve, produz em nós, de modo incomparável e maravilhoso, um peso eterno de glória”. 6

Santo Afonso Maria de Ligório

  • 1Sb. VIII, 1
  • 2Eclo. XXXI, 2
  • 3Lc. XXII, 41
  • 4Eclo. XXXVIII, 9
  • 5Rm. VIII, 18
  • 6II Cor. IV, 17