A herança do papa Francisco: tentativa de um balanço teológico (3)

Fonte: FSSPX Actualités

Assinatura do Documento sobre a Fraternidade Humana

O site FSSPX apresenta uma tentativa de balanço teológico do pontificado do Papa Francisco, que será publicado em seis partes. O texto completo será disponibilizado em formato PDF quando a última parte for publicada.

3 A fraternidade universal: horizonte e finalidade do pontificado

A fraternidade universal, se bem que trazida à luz posteriormente a outros temas, como a ecologia ou a sinodalidade, constitui de fato a finalidade lógica do pensamento e da ação do Papa Francisco. E acaba por revelar-se nada menos que a síntese de todo o seu pontificado:

  • a “teologia do povo” fornece as suas raízes, pondo no centro a ideia de que os povos são todos autenticamente portadores de uma missão espiritual;
  • a misericórdia é o seu motor, a energia pastoral que permite integrar todas as pessoas e superar as oposições.
  • a fraternidade universal é o seu horizonte, a forma acabada em direção à qual tende o projeto como um todo.

Essa noção de fraternidade se concretiza em diversos textos, discursos e gestos, porém a sua expressão mais cabal se encontra na encíclica Fratelli tutti, de 3 de outubro de 2020. Sem embargo, para que melhor compreendamos a sua significação, é preciso remontar a um acontecimento fundador: a assinatura do Documento de Abu Dhabi em 2019. Esse momento lança luzes não somente sobre a encíclica, mas também sobre a visão global de Francisco.

3.1 Abu Dhabi: um ato fundador

Em 4 de fevereiro de 2019, Francisco viaja a Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, onde assina, junto com o Grande Imã de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, um Documento sobre a Fraternidade Humana para a Paz Mundial e a Coexistência Comum. Trata-se de um acontecimento histórico por três razões: é a primeira vez que um Papa viaja à península arábica; a assinatura acontece diante de representantes de várias religiões, num ambiente público e diante da imprensa; o documento firmado, mais que uma simples declaração de intenções, é um texto que compromete teologicamente ambas as partes signatárias.

O documento afirma, em particular, que “o pluralismo e as diversidades de religião, de cor, de sexo, de raça e de idioma são uma sábia vontade divina, pela qual Deus criou os seres humanos”32. Tal formulação vai muito além da simples tolerância religiosa, apresentando a pluralidade de religiões como algo que faz parte do desígnio positivo de Deus. Esse trecho provocou acirrada controvérsia. Segundo a doutrina católica tradicional, se por um lado Deus permite o mal ou o erro, por outro não pode nunca desejá-los positivamente. Ora, afirmar que a diversidade de religiões é desejada por Deus equivale a dizer que existe uma pluralidade legítima de caminhos para Deus, o que por sua vez é uma contestação da unicidade salvífica de Cristo e da Igreja. 

Na esteira da assinatura do documento, foi lançado em Abu Dhabi um projeto arquitetônico chamado de a Casa da Família Abrâmica, que reúne três lugares de culto postos lado a lado: uma igreja, uma sinagoga e uma mesquita. A intenção é que o conjunto arquitetônico, ao permitir a coexistência pacífica das religiões num espaço comum, seja o símbolo visível da fraternidade humana apregoada no documento firmado por Francisco e Ahmad Al-Tayyeb. Ele ilustra a concepção de uma unidade erigida não sobre a verdade revelada, mas sobre o reconhecimento mútuo e a cooperação: todas as religiões são postas em pé de igualdade, como diferentes caminhos para um mesmo ideal humano.

Para Francisco, o Documento de Abu Dhabi é uma pedra angular. Refere-se a ele de modo explícito em Fratelli tutti, apresentando-o como fonte de inspiração direta da encíclica e manifestando seu desejo de retomar e desenvolver as intuições expressadas junto com o Grande Imã. Isto dá ao acontecimento de 2019 um alcance doutrinal e pastoral maior e definitivo.

3.2 Sistema poliédrico e inclusividade

Em Fratelli tutti, Francisco descreve uma fraternidade que deve estender-se ao conjunto da sociedade e até da humanidade. O objetivo seria a construção de uma “amizade social inclusiva e uma fraternidade aberta a todos”33, dentro de uma “cultura do encontro34 ” e de um “diálogo de culturas”35. Nessa visão, a Igreja seria algo como uma fonte singular da fraternidade humana, a serviço de um projeto comum a todas as culturas e religiões, projeto de paz, de justiça e de solidariedade.

Francisco sublinha de modo particular a sorte dos imigrantes, a qual considera um teste definitivo para as sociedades modernas: “Os imigrantes são uma bênção, uma riqueza, um dom que convida a sociedade a crescer”36. Pelo que é preciso resistir à “tentação de criar uma cultura de muros, de erguer muros, muros no coração, muros erigidos sobre a terra a fim de evitar esse encontro com outras culturas, com outras pessoas”37. Em lugar de muros, pontes; em lugar de fronteiras, aberturas.

A fim de ilustrar a sua visão, Francisco se vale da imagem do poliedro, já presente em Evangelii Gaudium. “Nem a esfera global, que aniquila, nem a parcialidade isolada, que esteriliza. (...) O modelo é o poliedro, que reflete a confluência de todos os elementos parciais, que nele conservam a sua originalidade”38. Essa metáfora contrapõe a esfera, que esmaga as diferenças numa uniformidade forçada, ao poliedro, que permite manter a diversidade dentro de um todo harmonioso. Como imagem, é sedutora: cada cultura, cada religião mantém a sua identidade própria, ao mesmo tempo em que participa de uma construção comum.

E contudo, como deixar de ver a precariedade de uma fraternidade dessa espécie? Com efeito, se a unidade buscada não estiver fundada sobre uma verdade transcendente que se imponha a todos, a única base que terá será uma vontade puramente política de coabitação: fraternidade assaz frágil, essa em que se sonha com a paz social fora da unidade da verdade.

E o mais importante: como não ver, numa fraternidade universal apresentada como ideal moral e social, que essa “amizade social inclusiva” exclui na prática a Deus, e que, estando “aberta para todos”, está concretamente fechada para Cristo? Com efeito, este já não teria o direito de oferecer aos homens uma fraternidade transcendente que os ligue a Deus divinizando-os. Fica reduzido a ser um mero modelo de abertura e de humanidade entre tantos outros. Já não seria o único Salvador, que está no centro da História.  

3.3 Os novos horizontes da Igreja

Portanto essa concepção da fraternidade repercute de modo considerável na missão da Igreja. Tradicionalmente, a Igreja se via como a arca da salvação: reunia os povos ao conduzi-los à verdade revelada e à vida sobrenatural. Na visão de Francisco, porém, a unidade já não se realiza pela conversão e pela santificação, mas pela cooperação e pelo diálogo. A Igreja torna-se uma facilitadora, um ator entre outros num processo mundial de fraternização. Sua missão específica se dilui no bojo de um projeto comum pretensamente mais vasto, mais universal, em direção a novos horizontes. 

Quando Francisco afirma: “Hoje em dia, ou todos nos salvamos, ou não se salva ninguém”39, não é da salvação eterna que ele fala, mas da luta contra a pobreza, as injustiças e as mazelas sociais. A palavra “salvação” é empregada num sentido meramente terrestre, imanente, centrado nas condições de vida neste mundo. Para obter a inclusão de todas as crenças indistintamente, é preciso pagar o preço de uma verdadeira neutralização da mensagem evangélica.

Essa mudança se manifesta também em âmbito político: Francisco pede o fortalecimento das instituições internacionais, a promoção de uma governança global capaz de responder aos desafios planetários40. A fraternidade universal torna-se assim a base de uma nova ordem mundial, fundada nos direitos do homem e na solidariedade global, e que terá no Papa o seu profeta e cantor.

E essa fraternidade não se limita a uma ideia abstrata, mas se concretiza em domínios específicos, à cabeça dos quais vem postar-se a ecologia. Em Laudato si’, Francisco desenvolve o conceito de “casa comum”. A Terra é apresentada como um bem universal pertencente a toda a humanidade. A proteção do meio ambiente torna-se então o terreno privilegiado onde a fraternidade pode ser exercida concretamente. Ao cuidarem do planeta, os homens cuidam uns dos outros. Destarte, a crise ecológica surge como ocasião para promover uma solidariedade mundial, que ultrapassa fronteiras e divisões. Essa convergência prepara a próxima etapa da nossa análise: a ecologia integral, apresentada por Francisco como uma dimensão essencial da fraternidade universal e da missão da Igreja no mundo.

  • 32

    Documento sobre a Fraternidade Humana para a Paz Mundial e a Coexistência Comum, 4 de fevereiro de 2019.

  • 33

    Fratelli tutti, n° 94.

  • 34

    Ibid., n° 30.

  • 35

    Ibid., n° 136.

  • 36

    Ibid., n° 135.

  • 37

    Ibid., n° 27.

  • 38

    Evangelii Gaudium, n°235-236.

  • 39

    Fratelli tutti, n° 137.

  • 40

    Ibid., n°172-175.