Dom Guéranger profetizou no século XIX a ‘heresia litúrgica’ pós-conciliar, mas o Papa Francisco o estabelece em ‘precursor’ da nova liturgia.

Dom Prosper Guéranger (nascido em 4 de abril de 1805), abade beneditino de Saint-Pierre de Solesmes, foi o maior liturgista do século dezenove. Morreu em fama de santidade no dia 30 de janeiro de 1875.
Para devolver ao clero o conhecimento e amor pela liturgia romana, Dom Guéranger publicou as Instituições Litúrgicas, verdadeira soma da história da liturgia, de extraordinária erudição e juízo certeiro. São quatro volumes totalizando mais de 2.500 páginas.
No capítulo catorze do primeiro volume, Dom Guéranger caracteriza o espírito anti-litúrgico em suas várias manifestações, falando de heresia. Sob o nome de ‘heresia anti-litúrgica’, ele descreve um espírito, uma atitude que é inimiga das formas de culto. Esse espírito procede essencialmente por via de negação e de destruição, endossando qualquer transformação que afete a ponto de desfigurar; é uma postura que deriva de uma vontade ferrenha cujo alvo são as próprias crenças, por causa da ligação íntima entre a liturgia e o credo, a lex orandi e a lex credendi. Dom Guéranger não hesita em descrever como ‘sectários’ aqueles que trabalham para destruir a liturgia em qualquer época.
Dom Guéranger investiga a história da Igreja, e descobre, no protestantismo, a quintessência da heresia anti-litúrgica. Assim, propõe uma sistematização dessa postura em doze características, que para nós são uma verdadeira descrição daquilo que, mais de cem anos depois, será a revolução litúrgica empreendida em cumprimento das disposições do Concílio Vaticano II. Como não podemos apresentar esse capítulo em sua totalidade, retomaremos aqui alguns pontos particularmente esclarecedores.
“O primeiro caráter da heresia anti-litúrgica é o ódio à Tradição nas fórmulas do culto divino”. A lógica disso é clara: “Todo sectário que deseja introduzir uma nova doutrina se encontra infalivelmente na presença da Liturgia, a qual é a tradição em sua forma mais imponente, e por isso não pode sossegar enquanto não silenciar essa voz, enquanto não rasgar essas páginas que contêm a fé dos séculos passados”. O modernismo, desejoso de introduzir suas doutrinas perniciosas, não podia ignorar a liturgia: tinha que corrompê-la, em caso contrário fracassaria.
O segundo princípio, continua Dom Guéranger, “é substituir as fórmulas de estilo eclesiástico por leituras da Sagrada Escritura. Isso torna possível silenciar a voz da tradição, que a seita teme acima de tudo, e fornece um meio de propagar suas ideias por meio da negação ou da afirmação. Por meio da negação, passando em silêncio, por uma escolha hábil, os textos que expressam a doutrina oposta aos erros que ela quer fazer prevalecer; por meio da afirmação, trazendo à luz passagens fragmentadas que mostram apenas um lado da verdade”.
Esse princípio foi aplicado no Novus Ordo Missae promulgado por Paulo VI: por um lado, acrescentando textos da Sagrada Escritura e, por outro, suprimindo ou modificando as antigas e veneráveis orações do Missal Romano. Quatro exemplos: a eliminação do ofertório romano, que foi considerado uma redundância; a eliminação das expressões de menosprezo pelas coisas deste mundo -despicere terrena- que encontramos pelo menos 15 vezes no missal tridentino, e que agora se encontra apenas uma vez no novo missal; o desaparecimento da menção da alma na missa de defuntos; e, finalmente, a eliminação de parte do Kyrie.
O quarto princípio, descrito pelo Abade de Solesmes, é “uma contradição habitual com seus próprios princípios”. Assim, “todos os sectários, sem exceção, começam reivindicando os direitos da antiguidade [o que Pio XII condena entre os modernos como “arqueologismo”]; eles não querem nada a não ser ‘o originário’, e pretendem levar a instituição cristã de volta ao berço. Para esse fim, eles podam, apagam, subtraem, tudo cai sob seus golpes e, quando se espera ver o culto divino reaparecer em sua pureza original, nos vemos envoltos em novas fórmulas que datam apenas de ontem, e que são inquestionavelmente humanas, já que a pessoa que as escreveu ainda está viva".
O quinto princípio é o de retirar do culto todas as cerimônias e fórmulas que expressam mistérios. Dom Guéranger prossegue: “Não há mais um altar, mas simplesmente uma mesa; não há mais um sacrifício, como em todas as religiões, mas apenas uma ceia; não há mais uma igreja, mas apenas um templo, como entre os gregos e os romanos; não há mais arquitetura religiosa, uma vez que não há mais mistérios; não há mais pintura e escultura cristãs, uma vez que não há mais religião sensível; finalmente, não há mais poesia em um culto que não é gerado nem pelo amor nem pela fé”.
O sexto princípio estabelece que “a supressão das realidades misteriosas produz a extinção total daquele espírito de oração que é chamado de unção no catolicismo”. A revolução litúrgica pós-conciliar levou a um enfraquecimento da fé e, com isso, a um ressecamento da piedade, como evidenciado pela queda vertiginosa da prática sacramental.
O oitavo princípio é formulado da seguinte forma por Dom Guéranger: "Uma vez que um dos principais objetivos da reforma litúrgica era abolir atos e fórmulas místicas, seguiu-se necessariamente que seus autores deveriam exigir o uso do vernáculo no serviço divino. Esse é um dos pontos mais importantes aos olhos dos sectários". O monge beneditino continua: "Convenhamos, é um golpe de mestre do protestantismo ter declarado a guerra à língua sagrada; se conseguisse destrui-la, seu triunfo estaria bem avançado. Apresentada aos olhos profanos como uma virgem desonrada, despida, a liturgia, a partir daquele momento, perdia seu caráter sagrado, e o povo logo descobria que não valia a pena interromper seus afazeres, ou seus momentos de lazer, para ir ao templo ouvir falas como as que são proferidas em praça pública".
Quisessem as autoridades eclesiásticas dignar-se a reconhecer que a advertência do fundador de Solesmes era de fato profética...
... mas não, longe disso, até o próprio Santo Padre, em mensagem de 30 de janeiro de 2025, dirigido ao atual abade de Solesmes -Dom Geoffroy Kemlin- por ocasião do 150 aniversário da morte de Dom Guéranger, se apressa para atribuir a filiação do sábio abade à Constituição Sacrosantum Concilium, do Concílio Vaticano II. Só para lembrar, a constituição Sacrosanctum Concilium é o texto a partir do qual os órgãos pós-conciliares elaboraram a nova liturgia (n° 44-45). De fato, ele empreende uma transformação radical da liturgia. Em particular, anunciou a revisão da missa (n° 50), um novo rito de concelebração (58), a revisão dos ritos do batismo (66), da confirmação (71), da penitência (72), das ordenações (76), do matrimônio (77) e dos sacramentais (79), etc.
No documento do Papa Francisco, Dom Guéranger é útil até para justificar o Motu Proprio Traditionis Custodes, pois está fora de questão apresentar seu verdadeiro pensamento, que não é difícil de entender se alguém se der ao trabalho de estudar seus escritos. O raciocínio do Papa passa por elogiar “o carisma [em Dom Guéranger] da fidelidade à Santa Sé e ao Sucessor de Pedro, particularmente no campo da liturgia. [...] Que o exemplo de Dom Guéranger inspire no coração de todos os batizados não só o amor a Cristo e à sua Esposa, mas também a confiança filial e a dócil colaboração cum Petro et sub Petro, para que a Igreja, fiel à sua Tradição viva, continue a elevar “uma única e mesma oração capaz de exprimir a sua unidade”. Agora sim, depois da destruição modernista da liturgia multissecular da Igreja, em nome de uma ‘Tradição viva’ (ou seja, evolutiva) inventada desde o Vaticano II°, apela o Papa à obediência à autoridade suprema. Será que a autoridade suprema na igreja não deve obedecer ela, em primeiro lugar, à Fé e à expressão que dela nos transmite a liturgia de sempre, “a qual é a tradição em sua forma mais imponente (...), pois contêm a fé dos séculos passados” (Dom Guéranger)?
Honestamente, o pensamento que o Papa atribui a Dom Guéranger, é mesmo o dele? O quê que pensava e dizia este mestre da liturgia? Perante tamanha cegueira e manipulação, vem ao espírito aquela frase de São Paulo: “Porque virá tempo em que (muitos) não suportarão a sã doutrina, mas multiplicarão para si mestres conforme os seus desejos, (levados) pelo prurido de ouvir. E afastarão os ouvidos da verdade, e os aplicarão às fábulas” (II Tim. 4,3).
Por nossa parte, mantenhamo-nos afastados das fábulas, fiéis à liturgia de sempre, sem cansarmos de cantar os 6 Kyrie eleison e Christe eleison que a nova missa eliminou...